Eu morri. Eu morri e, exatamente porque eu morri, eu agora vivo.
É esquisito pensar assim, mas a vida que se pode dizer plena - no sentido mesmo de completa, de abrangente, no sentido mesmo de vida como uma ameba do mundo -, a vida que se pode dizer plena é feita de várias pequenas mortes.
E eu falo de várias mortes em uma só pessoa. Em cada só pessoa. Mortes que vão tornando cada ser um monte de seres. É complexo, e doi, mas a vida não é una. Há uma história, e o passado amontoa uma construção que até pode ser vista como contínua durante a existência, mas com ciclos e superações - como a comparação que parece idiota, mas talvez se valide pela inocência, de um pokémon que evolui. É um pedaço de mandioca que vira um purê e depois um escondidinho, mas no fundo só se tornou um escondidinho porque uma vez foi mandioca e uma vez foi purê - mas que não vai continuar escondidinho.
Eu morri, e parece que eu já vinha antecipando a minha morte. Parece que eu vinha tentando me alertar que ia morrer, mas não percebi. E quanto mais eu fracassava no alerta, mais perto estava de perceber, e mais perto estava a minha morte de mim. (In)felizmente, ela chegou antes da ideia. Mas, exatamente por isso, exatamente por tirar meu coração de mim e tostá-lo e devolvê-lo como que cinzas de uva passa, por isso provocou a ideia. A ideia foi convocada porque era a única maneira de re-hidratar o sentimento, e re-calibrar a vida. O ponto é que, convocada ou não, veio de dentro, rasgou a passa e escorreu, envolvendo-a e renovando-a.
É esquisito. É contraditório. É uma mistura de clarividência, coerção e força de vontade, tudo posto num caldeirão e cozido e cozido. Mas é eficaz. É tomar uma poçãozinha de homeopatia da avó da vizinha, mas com um mecanismo complexo e simples o suficiente para revirar tudo, matar, e viver.
Eu agora vivo; esperando a próxima morte para poder ser ainda um pouco mais feliz e resolvida.