Madrugada. Tinha entrado cedo embaixo das cobertas apesar do calor estafante, para enganar os pais, que nunca nem suspeitariam que ela já estava vestida para sair. Levantou e saltitou na ponta dos mini-dedinhos até a porta da sala. Respirou fundo, o mais fundo que conseguiu - que nem era tão fundo se se considerasse o tamanho de seus minúsculos pulmõezinhos. Girou a chave, com forcinha. Pôs as botinhas, colocando o cadarço por baixo por cima por baixo por cima por baixo por cima como a mamãe fazia. Deu um nozinho mal feito, só pra segurar a obra de arte nos pés. Saiu, deu um passo para fora e já se sentia como se tivesse conquistado o mundo. Era como se ela pudesse tudo, como se fosse a princesa indiana das historinhas de antes de dormir, que andava em cima de um elefante e conhecia todas as pessoas do mundo. Essa princesa indiana podia mandar em todas as pessoas do mundo, mas não mandava, porque era boa - mas podia. A menininha também podia, tanto podia que estava ali, do lado de fora, de madrugada. E os pais dormiam. A menininha correu. Só correu, porque queria correr, porque podia correr, porque correr era a melhor coisa a se fazer quando se estava livre. Correu por dentre as folhas, por dentre as lajotas, por dentre as gotas de orvalho, por dentre as estrelas. Subiu na macieira - ela era muito boa nisso, muito boa mesmo, nem o primo Jonas subia mais rápido que ela, "sem cair!", e o primo Jonas era dois anos mais velho! Logo cansou de correr, de subir, de descer, sua energiazinha era pouca a essa hora do dia. Caminhou devagar, marchando, dobrando forte os joelhos e baixando os pés com um grande impulso para ouvir os tec tecs das botinhas. Entrou, fechou a porta devagar, para não fazer barulho e não se delatar, o plano perfeito estava funcionando tão bem! Abriu um grande bocejo, que molejou por inteiro seu corpinho cansado. E ela caiu bem ali, como uma pétala na grama, serena, suave, leve. Pela manhã, a mãe levou um susto com a cama da filha vazia, tão cedo, cadê ela? O pai foi checar a sala, ah, lá estava ela, deitada no tapete, essa menininha não tinha mesmo jeito. Já vestida, tão cedo? De certo tinha levantado sem sono e já tinha se arrumado para o rotineiro passeio de todo o santo domingo de manhã. Que gracinha, que sapeca essa nossa filha.
- Clarice? - a mãe acariciava de leve o corpinho estirado no chão.
A menininha tremelicou as palpebrinhas, percebendo o significado daquele momento. Era isso, pronto, um pequeno vacilo, tinha se deixado vencer pelo cansaço e agora todo o seu plano estava arruinado e ela não poderia nunca mais tomar sorvete, não! ela não poderia nunca mais tomar sorvete nem comer bolachas!
- Clarice, meu amor, o que você está fazendo vestida já tão cedo? Ah, você quis fazer uma surpresa pra mamãe, se aprontar sozinha, ah! Você até amarrou as botinhas, veja, João, ela até amarrou as botinhas - o pai acenava com a cabeça, com os olhos marejados, pensando que aqueles passeios de todo o santo domingo poderiam ter servido para algo, afinal.
A menininha parou, atônita - era isso, então, que estava acontecendo? Mas e a bronca? E o sorvete e as bolachas? A menina brilhou e repentinamente mudou a expressão do rostinho. Sorriu bobamente, fingindo concordar com a mãe, que exaltava-se de orgulho. A mãe beijou a filha e foi fazer o café, o pai foi ler o jornal, rapidinho, antes que tivessem que sair.
E a menininha? Não se via mais, o que se via agora no centro do tapete era uma minúscula, quase imperceptível, mulherzinha, sorrindo de satisfação. Ela não era mais a filhinha ingênua, ela não só podia agora escapar dos pais, como podia se dar ao luxo de falhar e ainda assim dominar os pais. Ela tinha agora o dom da manipulação, agora, há mais ou menos uns dois minutos. Agora ela podia tudo, agora ela era exatamente como aquela princesa indiana, não! ela era mais que aquela princesa indiana, ela era a rainha do mundo. A partir de agora, os pais que se cuidassem - se fossem bons súditos, quem sabe, podia até ser que ela os deixasse tomar um sorvetinho ou comer uma bolachinha uma vez ou outra, mas só porque ela era boa, porque ela era muito boa.