quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Apesar de tudo, a distância une. Quando se está perto, não há perigo em se expressar de menos, em revelar aos poucos, em esconder um pouco mais. E se for se fazendo necessário o aumento da dose, há sempre o dia seguinte, as horas seguintes, o instante seguinte. A presença física, os olhares, os esbarrões, as respirações - todos eles compensam a carência lexical e substituem os platonismos. Mas quando se perdem as compensações só restam as palavras, as lembranças e os sonhos. Os sonhos conscientes, os planos, a ansiedade; e os sonhos inconscientes, que vêm quando se dorme, nos quais se vê uma semi-presença não corpórea frágil e comprimida. Na ausência, há a necessidade de expressar os sentimentos guardados, de usar a dose extra para suprir a falta das compensações. E é nessa hora que tudo cresce, que tudo se expande gradativamente com uma intensidade explosiva, pautada pela expectativa da reaproximação. É nessa hora, é assim que a distância une.
Isso é válido para as distâncias relativamente pequenas em termos temporais, depois de certo tempo imagino que haja uma acomodação do corpo à falta - como se costuma acomodar-se a tudo que não se pode evitar. Eu gostaria de pensar que não, mas não posso comprovar nada. O fato é que eu achei que a distância seria perigosa e extremamente dolorosa - e foi, no começo - mas depois passou a ser extremamente emocionante. 

domingo, 26 de dezembro de 2010

Madrugada. Tinha entrado cedo embaixo das cobertas apesar do calor estafante, para enganar os pais, que nunca nem suspeitariam que ela já estava vestida para sair. Levantou e saltitou na ponta dos mini-dedinhos até a porta da sala. Respirou fundo, o mais fundo que conseguiu - que nem era tão fundo se se considerasse o tamanho de seus minúsculos pulmõezinhos. Girou a chave, com forcinha. Pôs as botinhas, colocando o cadarço por baixo por cima por baixo por cima por baixo por cima como a mamãe fazia. Deu um nozinho mal feito, só pra segurar a obra de arte nos pés. Saiu, deu um passo para fora e já se sentia como se tivesse conquistado o mundo. Era como se ela pudesse tudo, como se fosse a princesa indiana das historinhas de antes de dormir, que andava em cima de um elefante e conhecia todas as pessoas do mundo. Essa princesa indiana podia mandar em todas as pessoas do mundo, mas não mandava, porque era boa - mas podia. A menininha também podia, tanto podia que estava ali, do lado de fora, de madrugada. E os pais dormiam. A menininha correu. Só correu, porque queria correr, porque podia correr, porque correr era a melhor coisa a se fazer quando se estava livre. Correu por dentre as folhas, por dentre as lajotas, por dentre as gotas de orvalho, por dentre as estrelas. Subiu na macieira - ela era muito boa nisso, muito boa mesmo, nem o primo Jonas subia mais rápido que ela, "sem cair!", e o primo Jonas era dois anos mais velho! Logo cansou de correr, de subir, de descer, sua energiazinha era pouca a essa hora do dia. Caminhou devagar, marchando, dobrando forte os joelhos e baixando os pés com um grande impulso para ouvir os tec tecs das botinhas. Entrou, fechou a porta devagar, para não fazer barulho e não se delatar, o plano perfeito estava funcionando tão bem! Abriu um grande bocejo, que molejou por inteiro seu corpinho cansado. E ela caiu bem ali, como uma pétala na grama, serena, suave, leve. Pela manhã, a mãe levou um susto com a cama da filha vazia, tão cedo, cadê ela? O pai foi checar a sala, ah, lá estava ela, deitada no tapete, essa menininha não tinha mesmo jeito. Já vestida, tão cedo? De certo tinha levantado sem sono e já tinha se arrumado para o rotineiro passeio de todo o santo domingo de manhã. Que gracinha, que sapeca essa nossa filha.
- Clarice? - a mãe acariciava de leve o corpinho estirado no chão.
A menininha tremelicou as palpebrinhas, percebendo o significado daquele momento. Era isso, pronto, um pequeno vacilo, tinha se deixado vencer pelo cansaço e agora todo o seu plano estava arruinado e ela não poderia nunca mais tomar sorvete, não! ela não poderia nunca mais tomar sorvete nem comer bolachas!
- Clarice, meu amor, o que você está fazendo vestida já tão cedo? Ah, você quis fazer uma surpresa pra mamãe, se aprontar sozinha, ah! Você até amarrou as botinhas, veja, João, ela até amarrou as botinhas - o pai acenava com a cabeça, com os olhos marejados, pensando que aqueles passeios de todo o santo domingo poderiam ter servido para algo, afinal.
A menininha parou, atônita - era isso, então, que estava acontecendo? Mas e a bronca? E o sorvete e as bolachas? A menina brilhou e repentinamente mudou a expressão do rostinho. Sorriu bobamente, fingindo concordar com a mãe, que exaltava-se de orgulho. A mãe beijou a filha e foi fazer o café, o pai foi ler o jornal, rapidinho, antes que tivessem que sair.
E a menininha? Não se via mais, o que se via agora no centro do tapete era uma minúscula, quase imperceptível, mulherzinha, sorrindo de satisfação. Ela não era mais a filhinha ingênua, ela não só podia agora escapar dos pais, como podia se dar ao luxo de falhar e ainda assim dominar os pais. Ela tinha agora o dom da manipulação, agora, há mais ou menos uns dois minutos. Agora ela podia tudo, agora ela era exatamente como aquela princesa indiana, não! ela era mais que aquela princesa indiana, ela era a rainha do mundo. A partir de agora, os pais que se cuidassem - se fossem bons súditos, quem sabe, podia até ser que ela os deixasse tomar um sorvetinho ou comer uma bolachinha uma vez ou outra, mas só porque ela era boa, porque ela era muito boa.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Este natal tenta, se esconde, se disfarça, vem mansinho, só para fingir ser o espelho de todos os outros e outros natais; mas não consegue, este natal é diferente. Este natal é diferente, porque eu sou diferente, porque tudo é diferente. Este natal não teve festão, não teve vários presentes, não teve música adequada, não teve nem votos de "feliz natal". Este não foi um natal estupendamente feliz, mas não foi um natal de superfície. 
Os outros natais, aqueles que se diziam verdadeiros, que eram grandes, faziam alarde, chegavam antecipados e iam embora atrasados, e que prometiam felicidades generosas e inalcansáveis com pilhas de presentes e mais presentes - aqueles natais eram ilusórios. Aqueles natais traziam um clima bom, mas era tudo mentira. Talvez até tivesse um fundinho de verdade, mas um fundinho minúsculo que se fazia passar por uma larga e satisfatória superfície. Este natal não, este natal se revela como o que realmente é: mais um dia do ano, mais uma barreira a se ultrapassar rumo ao ano que vem. É um dia normal, que só pede baixinho para que se tenha uma dose extra de amor, para que se lembre dos esquecidos, para que se seja generoso. Mas não obriga, não força goela a baixo, só sugere. Eu aceitei de bom grado: foi surpreendente, nunca esta havia sido uma escolha consciente. Eu lembrei de sopetão, como se espantasse um mosquito que aparecesse de repente; lembrei porque simplesmente tinha do que lembrar, tinha do que sorrir e tinha ao que retribuir.
Neste natal eu vi o que é o verdadeiro e mítico "espírito de natal". É um contozinho curto, mas muito ilustrativo:
"Havia dois velhinhos, muito idosos, que viviam juntos desde os tempos de juventude. Tiveram quatro filhas, cuidaram muito bem delas e todas elas foram ter as suas próprias vidas e seus próprios filhos. Era uma família normal, que brigava bastante e se unia de tempos em tempos, e com isso os velhinhos iam vivendo, talvez não desgostosamente, nem por total satisfação, mais para dar continuidade a um costume que havia tomado conta de seus seres tão intrinsecamente que seria difícil abandoná-lo. Foi assim por um bom tempo, os velhinhos se sustentando, se aguentando, vivendo: a velhinha ficava em casa, cozinhava, o velhinho saía todos os dias para jogar cartas. Até que o velhinho caiu; se machucou, e teve que ficar de cama. O velhinho precisou de cuidados extensos, integrais, de uma enfermeira e atenção da velhinha. De repente, o velhinho passou a ficar em casa todos os dias, quietinho no seu canto, o velhinho readentrou a vida da velhinha, incomodou-a, pediu ajuda sem querer pedi-la. A velhinha gostou da intromissão, que incomodava sem querer incomodar, passou a ter o marido com ela, a sentir o peso daquele silêncio, que agora era um silêncio ocupado por um corpo frágil, não mais por uma ausência distante. E aos pouquinhos aquilo que veio para o mal foi reanimando o carinho dos velhinhos, que sem trocar palavras ruins nem boas, puderam sentir novamente suas necessidades mútuas."
Ontem, no natal, eu pude presenciar a prova da veracidade desse conto. Eu vi, sim, eu vi com meus próprios olhos quando a velhinha chegou de mansinho perto do velhinho, sem querer provar nada para ninguém, num momento só para ela e para ele, e repousou a mão, rapidinho, de leve, na careca do velhinho, como que dizendo "está tudo bem, meu querido". Eu pude ver, sim, com meus próprios olhos, o que o "espírito de natal" sempre quis contar e ninguém nunca quis ouvir: que a convivência traz o apego, e o apego implica a vontade da convivência. É esta a força intrínseca do "espírito de natal", a saudade, o amor que, nas distâncias físicas ou psicológicas, implora por uma reaproximação e lembra da necessidade do outro.

Feliz natal verdadeiro - que só foi possível, agora eu vejo, por causa daqueles que fizeram com que eu me apegasse tanto a ponto de realmente querer, não só aceitar.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Uma outra coisa que eu gosto de fazer é deitar no banco de trás do carro em movimento e olhar pela janela para o mundo de ponta cabeça. Assim eu vejo tudo invertido, tudo diferente, surpreendente, belo. Com isso não me sinto deslocada, isso me deixa segura, me sinto parte desse algo que não é o algo igual, o algo previsível, o algo intimidador. Esse algo novo é um algo frágil, torto, arquitetonicamente irrealizável, ordinariamente impensado. É um algo com os pés no céu e sem cabeça. Me sinto bem, me sinto livre, essa desconjunção me faz feliz. 
Sem mais nenhuma metáfora sensacional ou analogia estridente por hoje, só mesmo esse detalhezinho que agrada ao meu cérebro desconcertado e talvez possa vir a provocar alguns sorrisos velados nessas bocas rígidas.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Eu queria viver num mundo de cegos. Num mundo de cegos, a beleza não seria valorizada, e sim a inteligência. Num mundo de cegos, não iria importar a moda, e sim o conforto. Num mundo de cegos, os produtos não venderiam pela embalagem, e sim pelo efeito. Num mundo de cegos, não se veria televisão, se contaria histórias. Num mundo de cegos, a música não seria mero acessório, tomaria metade dos sentidos. Num mundo de cegos, a palavra não seria vã, teria o valor da ação. Num mundo de cegos, o abraço não seria convenção social, e sim a percepção do outro. Num mundo de cegos, não se memorizariam faces, e sim vozes. Num mundo de cegos, quaisquer relações seriam normais, não importando as dissonâncias aparentes. Eu queria viver num mundo de cegos.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Não dá mais. Hoje eu finalmente entendi que nunca mais vou conseguir compor o todo. Há um tempo muito curto eu entrei naquilo que chamam vida e agora não consigo mais voltar de lá. Todos os caminhos parecem vãos, parecem vis. Cadê, neste lugar que se convencionou sociedade, a naturalidade da ação, a espontaneidade, a vontade primitiva, verdadeira, o riso sincero, o calor humano, o olhar compreensivo? Aqui se vê o desprezo, a indiferença, a busca pela superioridade inerente, o esbanjar da vitória, a humilhação, a frieza, a segregação.
Eu fui ao shopping hoje, depois de vir da casa de um amigo querido, e me senti desconfortável. Eu quis sair dali no momento em que entrei, eu quis ir para casa e eu quis um abraço. Um famoso sábio holandês uma vez me disse que tem problemas ao andar pela rua, pois sente a necessidade de notar toda e cada pessoa que vê passar. Eu costumava olhar em geral para todas e me ater em somente uma outra que me interessasse, tentando desvendar seu interior. Hoje, porém, precisei notar todas. Notei-as, uma a uma, e nenhuma me notou de volta. Tive vontade de ajudá-las, de agarrá-las, sacudi-las, berrar em seus ouvidos para trazê-las de volta à vida, trazer-lhes de volta a vida. Não quis abraços dessas pessoas, eram todas absurdamente distantes de mim, mas quis abraçá-las todas, juntas, num grande abraço sincero, para que, todas juntas, experimentassem elas também o real. Todas são vítimas, tão vítimas que acabam tornando-se as assassinas umas das outras. 
As pessoas vivem para transformar o conforto da intimidade em industrial, porque dá dinheiro. Não é disso que precisamos, não precisamos de alguém que se aproprie da receita do brigadeiro, porque é barata e gostosa, e faça cada um deles valer três reais, ofertando-os em massa para quem puder comprar. O que precisamos é de alguém faça bandeijas e bandeijas de brigadeiro, exatamente porque é barato e gostoso, para que todos possam comer o quanto quiserem até ficarem felizes. Mas a felicidade não rende, o que dá dinheiro é a ilusão.
"Saia despreocupado
Mas cuidado porque existe o bem e o mal"

Eu criei um mundo utópico, onde os meus mais surreais e inomináveis anseios aconteciam e me faziam feliz. Esse mundo nascia ao anoitecer e morria com a ascensão das minha pálpebras. E todos os dias eu o escondia, com vergonha, com dúvida, com medo, e com uma vontade indescritível de voltar, na surdina.
Eu tive a impensável chance, entretanto, de ver esses anseios, um a um, conquistarem seu lugar à luz do dia. Um a um, como em uma procissão a céu aberto, eles foram se revelando a mim e ao mundo - ao meu seleto mundo - e adquirindo suas porções de concretude. É estranhésimo. Estou acompanhando a inversão da noite e do dia, do normal e do fora do padrão, do doce e do salgado, do cá e do lá. É incrível.
Enquanto meu submundo muda, contudo, o resto do mundo faz emudecer, submete, controla, reprime. O mundo real é o vetor contrário do novo caminho do meu mundo em realização. Nesse pequeno pedaço de sonho tudo é frágil, mas tem uma unidade interna estupenda, que fortalece de dentro para fora e faz manter o movimento. O movimento é tudo, o movimento alimenta, envivece.
Sim, é estranho e extraordinário, e por mais que seja limitado, é libertador. É como a sensação que se tem ao andar numa corda bamba sem treino. É perigoso, e o abismo é bem mais extenso que a superfície de apoio. Mas traz uma adrenalina vertiginosa que cura. E já é mais real do que devanear com a corda bamba, mesmo que no devaneio haja uma rede.

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Eu andei na corda bamba, sem rede, mas com alguns trapezistas a postos para me pegar. Já ajuda, e muito.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

As coisas que de verdade se fazem gostar prolongadamente não são aquelas das quais se gosta à primeira vista. As coisas que se infiltram no organismo para sempre de maneira positiva são aquelas que vão conquistando o afeto gradualmente; vão progredindo conforme nos envolvem em novos confrontos, sobrepondo camadas de alumbramento, cada qual maior, mais complexa e mais surpreendente que a anterior. Surpreendem por ter a capacidade intrínseca de fazerem-se tão novas quanto da primeira vez, mas cada vez melhores.
Outro ponto atraente nessas coisas é que elas desafiam. Algo que atrai demais diretamente não aguça o corpo, não incomoda o ego. O que sempre atraiu é confortável demais, por isso enjoa. É seguro, não é necessário buscá-lo, testá-lo, comprová-lo, afrontá-lo, pois ele sempre esteve ali e sempre estará, do mesmo jeito que ontem e amanhã. Uma analogia ilustrativa seria a dos alguéns que rotineiramente adiam a visita aos pontos turísticos internacionalmente famosos de sua cidade, porque eles sempre estiveram lá e é fácil vê-los a qualquer hora. As coisas que se fazem desgostosas para só depois se entregarem instigam. O homem estranha que algo que dizem ser maravilhoso não o cativou. Por isso tenta uma segunda vez e, mesmo assim, por ter continuado a não se impressionar, se espanta. Uma terceira vezinha, para tirar a prova, e agora aquilo parece ter uma pontinha de satisfação, que é buscada em maior quantidade da quarta vez, e quase completamente alcançada na quinta e assim por diante.
É o mistério o que almeja o homem, a busca por perguntas, a sensação de falta. É isso que faz com que se sinta a experiência da vida. A resposta ditada antes da piada, para ser decorada e repetida, isso cansa, isso é extremamente monótono. A vida vem do nojo que é enfiar o pé na lama, mas que depois faz rir e abrir os dedos; vem do frio na espinha causado pela fortes gotas de chuva, mas que depois refresca e alivia; vem do absurdo que é comer peixe cru, mas que depois dá vontade de morar no Japão; vem do preconceito contra aquele ser estranho, mas que depois te faz querer ser uma pessoa melhor. A vida é isso, a vida é o que faz crescer por dentro.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Ela chegou em casa do trabalho, exausta. Teve que abrir o portão, que não era automático, na chuva forte que acabara de se pronunciar; seu guarda-chuva havia quebrado na manhã precedente. Seu nível de estresse, que já estava alto - como sempre esteve desde que ela assumiu financeiramente sua vida -, voltou a subir e, quando abriu a porta de casa, tudo o que queria era um banho quente para limpar a poluição, o cansaço, o mau-humor e a chuva. Sempre tomava seu banho de recepção em cinco minutos, comia e deitava, mecanica e meticulosamente da mesma maneira. Neste dia teve uma epifania. Entrou no banheiro, acendeu a luz, despiu-se, ligou o chuveiro e apagou a luz. Entrou no box e fechou os olhos. 
Ela havia adentrado uma outra dimensão de vida, ao esgueirar-se cegamente para baixo da cortina quente e molhada que escorria pelo chuveiro. Ela, pela primeira vez em trinta e cinco anos, teve que pensar para se lavar. Teve que tomar cuidado ao buscar o shampoo, sentir a espuma para não ferir os olhos, tatear pela saboneteira para encontrar o sabonete certo. Na falta do que ver, teve que acompanhar-se. Seguia suas mãos com a imaginação, traçando silhuetas mentais - suas próprias voluptuosidades e contornos - acariciando-se, revelando-se, compreendendo-se.
Ficou assim por quinze minutos - o tempo habitual alongado três vezes -, esperando a água mostrar que tirara a sujeira, que tirara a espuma. Terminou, inspirou todo o momento para dentro de si, alongou-se, desligou o chuveiro, abriu os olhos, enxugou-se, vestiu-se e saiu do banheiro. Esqueceu do trabalho, esqueceu das brigas, esqueceu dos medos, esqueceu do jantar semi-pronto de microondas e do deitar sem-sono por conveniência; ligou para amiga e saíram para jantar de verdade, matar as saudades, rir, e depois voltar cada uma para seu canto para um sono desejado e inimaginavelmente revigorante.
A vida tem vários tipos de dias. Tem os dias que servem para agregar conhecimento, tem os dias que servem para agregar anos, tem os dias que servem para aliviar o corpo e o cérebro, tem os dias que não servem, tem os dias que engordam, tem os dias que embelezam, tem os dias que divertem, tem os dias que deprimem. O meu tipo de dia preferido, entretanto, é o dia que re-significa. É um risco que se corre apostar nesse dia, porque dependendo do significado prévio, a re-significação pode ter diferentes impactos. Mas é esse o tipo de dia que  agrega substância, é esse o tipo de dia que agrega vida.

Tive um dia re-significante absolutamente extraordinário.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Hoje eu estava no ônibus. Não muito vazio, nem muito lotado, naquele tipo de lotação em que todos os bancos estão ocupados, mas há algum espaço livre para os que forem em pé. Ele parou no ponto, um homem entrou pela porta de trás (certamente já tinha se acertado com o motorista), com uma cesta cheia de balas, chicletes e chocolatinhos. Parou na frente do grupo de bancos que fica após a parte maleável do ônibus - a mola que liga o último vagão ao ônibus de tamanho normal que o puxa. O homem tentava vender seus produtos, foi mostrando-os um a um e conversando com as pessoas sentadas nos bancos. Dizia "Pessoal, que tal um chiclete?", ou "Pessoal, vão querer uma jujuba?". No fim, algumas pessoas compraram algo e ele desceu, feliz, no ponto seguinte, agradecendo ao motorista.
O ponto é que, com este simples ato, realizado, provavelmente, com o puro e simples intuito de ganhar uns trocados, o homem dos doces fez algo muito mais incrível: fez de um bando de estranhos superficialmente desconexos um "pessoal" unido e adoçou singelamente algumas vidas amargas.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Eu assoprei com todo o meu fôlego o pedaço de ar ralo que se incitava sobre nós. Foi saindo de mim uma camada espessa de uma substância translúcida e rígida que, entretanto, moldou-se perfeitamente de acordo com nossas silhuetas. Ficamos assim, num isolado de espaço, de tempo e de mundo. Assim é fácil, assim é como se tudo estivesse em simultaneidade com o universo - mas que o universo? O meu universo? Eu ser simultânea a mim mesma é um grande passo fora dali, mas, em um espaço onde tudo é eu, é básico.
Eu quero a simultaneidade entre a minha felicidade - a nossa felicidade - e a só felicidade.
Felicidade. Taí coisa para a qual não devia haver condições de existência. E há, porém.
Não quero ser um fardo, não quero ser frágil, mas eu sou. Entrei no abismo cega e agora espero progredir sozinha, mas preciso de apoio.
Eu só queria ser o apoio, um apoio decidido e firme, um apoio de concreto armado, pintado, bonito e feliz. E só.
E de repente eu não era mais eu, eu era seu bem. Assim, sem mais nem menos. Assim, sem mais nem menos eu só vivi, eu não tive medo, eu não tive dor, eu não tive. Eu senti o estrondoso, eu senti o estupendo, de repente eu era o estupendo. E eu tinha de ser o estupendo e eu fui, mas agora preciso merecer, eu mereço? Eu sempre achei que merecia, mas que nunca mereceria. E sim, eu fui. Não quis fugir, quis encarar, quis agarrar, quis engolir o mundo. Fiz do nada o a minha volta para poder ser tudo, sentir tudo, viver tudo. Apanhei a eternidade.
Talvez seja isso, então, o que chamam felicidade. É inefável. É incompreensivelmente humano.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Eu queria tirar um cochilo, mas não pude - logo que deitei senti que algo me incomodava. Levantei procurando algum prego ou ervilha, mas não achei nada. Novamente senti uma pontada e percebi que o que me incomodava estava dentro de mim. Enfiei o dedo pelo meu tubo digestório e alcancei um alça, daquelas presas a uma corda, que acionam o mecanismo das caixinhas-de-música. Puxei-a para fora da minha boca, esperando ouvir palavras reconfortantes. A melodia que ouvi foi, no entanto, o silêncio do vácuo, me dizendo que não há a quem recorrer a não ser a mim mesma.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Um dia eu fiz planos, há muito tempo, e hoje constatei que deu tudo errado. Mas não deu tudo errado por causa disso. 
Às vezes me pergunto se tudo o que eu penso hoje também dará errado, e se eu pensarei que não terá dado tudo errado por isso.
E se der certo, se pensarei que deu tudo certo.
Por que a vida tem que ser tão relativa?

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Eu queria poder entender todos os meus sentimentos; mas se eu os entendesse quem sabe se os sentiria.