segunda-feira, 27 de junho de 2011

Já dizia o Hemingway de Woody Allen que se reconhece o verdadeiro amor quando, estando com ele, se perde o medo da morte. Eu sempre tive medo da morte, muito medo e, exatamente pelo terrível incômodo que é viver com medo, tentei diversos consolos para me dizer que estava tudo bem. Só conseguia perder totalmente o medo quando eu pensava que eu não morreria sozinha. O que importa - o que realmente importa - não é conseguir escapar de todas as infelicidades, é ter a menor quantidade possível delas, sim, mas estar preparado para quando elas surgirem. E essa preparação envolve nada mais do que encontrar um corpo (corpos) nos quais se apoiar. Porque o contato dá segurança e faz ficar tudo bem. Assim, nessa época eu senti exatamente o que dizia Hemingway (o do filme).
No entanto, algo me impediu de concordar com a frase, agora. Quando me veio à mente aquela reiterada cena de conforto, meu medo triplicou. Eu achei - e agora tenho - eu achei, afinal, as pessoas que preenchem definitivamente os lugares da cena hipotética. Antes havia uma teia de suposições, com alguns lugares (secundários) preenchidos. Mas agora, agora tudo tem um eixo em torno do qual girar. Agora tudo tem um sentido, um objetivo, uma rota. E assim, desse jeito tão seguro, tão certo, tão promissor, dá muito medo. Eu tenho tudo agora e exatamente por isso tenho medo de não ter mais. Por mais reconfortante que seja ter tudo comigo na hora que eu for morrer, como é que eu vou conseguir abandonar tudo? Como eu vou conseguir abandoná-la?
É como aprender o segredo milenar da vida e ter que desaprendê-lo; como poder comer doce todo dia e depois não poder mais; como ser apresentado a músicas maravilhosas e não poder ouvi-las; como ficar cego, surdo, mudo depois de passar anos vendo, ouvindo e cantando. E é assim, e é por isso que eu tenho medo e é por isso que dói. Dói muito. E é por isso que não é leviano.

domingo, 26 de junho de 2011

Ontem eu fui dividida em duas. Foi assim: de repente, por um alcance do limite, meu inconsciente se libertou do meu consciente. Os dois permaneceram dentro do meu corpo, nada dessa história de que eu me vi de fora e etc. Então uma parte de mim morreu de medo. Tremeu, chorou, e precisou urgentemente de uma proteção exterior, alguma compensação externa para a parte faltante que lhe dava segurança. A outra parte de mim sentia que tudo aquilo era irracional e injustificado, e sabia que estava tudo bem. Conversou, ironizou, mas não conseguiu proteger a irmã chorona porque havia agora entre elas uma barreira de força, como a que se forma entre dois ímãs em repulsão. Foi assim até que aquele calor fagocitante, aquela reiteração de compreendimento, aquele ritmo estimulante de vida - esgotaram a tensão, fundiram as irmãs em choque e trouxeram tudo de volta ao que era antes. 
Nenhum evento ocorre, entretanto, sem efeitos colaterais para o futuro dos envolvidos. No caso, o meu magmático fluido interior - antes de se recompor em matéria sólida - fez derreter parte da fonte de calor que o reunira. Assim, com a solidificação, parte dela ficou em mim e parte de mim ficou nela, mas não como em uma mistura de bolo mal batida e seca - alguma reação química inexplicável e nebulosa fez com que as partes de uma e de outra que atravessaram para outra e para uma se tornassem como que esferas flutuantes que ficaram retidas na posterior solidificação corporal de músculos e ossos e etc. Sendo assim o resultado final foi que as minhas partes se juntaram novamente, mas eu ganhei uma esfera dela e ela uma esfera de mim. O que nos torna três em um e que simbolicamente possa significar uma marcação de território (?) e uma dedicação exclusiva dupla... Enfim, nada que já não fosse acontecer por si só com o passar dos anos - que nem deixar um vidro derretendo sobre um molde à temperatura ambiente -, só que apressado.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Vive-se trinta e oito "seis-meses". E vem um "seis-meses" e resolve rebobinar todos os outros até o ponto zero e começar de novo. Mas a gravação é densa, porque são trinta e oito para caber em um, ou seja, onde deveria ter meio tem que caber dezenove e onde deveria ter um quarto tem que caber nove e meio e onde deveria ter um oitavo tem que caber quatro vírgula setenta e cinco e onde deveria ter... e a diferença vai parecendo cada vez mais alarmante, o que deixa esses "seis-meses" cada vez mais apressados. E é assim que todas as fases pelas quais passa o herói da tragédia grega se dão em um único dia. E o indivíduo é surpreendido, conformado, entristecido, enraivecido, decepcionado, comprimido, explodido e aliviado, tudo de uma só vez. E sai de lá como se tivesse saído de baixo de um rolo compressor, mas com a maquiagem feita e o terno passado - como na televisão. E é como na televisão, não parece real, parece uma pegadinha. E aí fim, rodam os créditos. E aí? Aí vai lá, se vira, pega o dinheiro e vai viver sua vida. E aí, de repente, o indivíduo se vê limpo, renovado e purificado, ereto, frente à vida livre, a toda aquela vida livre, a todos aqueles X "seis-meses" ansiando por serem preenchidos mas dessa vez com a proporção de um para um. 

quinta-feira, 9 de junho de 2011

É isso então que é levar uma vida de sinceridade. É isso que é se mostrar por inteiro, se vulnerabilizar assim, a troco do quê. Do que deveria ser o troco por um arroto rouco de angústia, angústia reveladoramente sincera, angústia que serenamente clama por ajuda. E a resposta é densa, não se sustenta e quebra antes de ser absorvida pela epiderme, esparramando cacos pinicantes, singelas milhões-de-mini-marretadas no cocoruto. E a resposta que deveria ser absurda, que deveria doer - não deveria, mas dói -, é aquela resposta que tem que ser entendida como um acolhimento. Porque esse é o ponto máximo concebível do acolhimento. E não vivemos em um mundo em ruínas quando o auge do acolhimento faz cair um por um os corações petrificados dos que sempre terão que mudar.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

A vida se faz por um punhado de pulsações de quase-mortes. Ela existe não por um pungente vetor força positivo, mas pela consecutiva e constante resistência e anulação de contra-vetores força que sempre surpreendem (apesar de serem comuns). Uma caminhada na calçada, casual, com propósitos de leviandade elevada. Um andar para frente e bum o choque iminente de um ônibus lotado em alta velocidade que tentou uma ultrapassagem arriscada bem quando outro ônibus ia encostar no ponto e acabou batendo bem naquele ponto da calçada imediatamente distante de você por apenas instante-temporais passo-espaciais. E você fica paralisado e pensa que podia ter morrido, que podia ter tido os miolos esmagados pelo vidro dianteiro os ossos quebrados pelo parachoque sangue por todo lado amigos chorando parentes chorando pai mãe irmãos amor chorando, por causa de um espirro antes de sair de casa ou um farol de pedestre que não se conseguiu atravessar ou uma pausa para matar um mosquito ou a distração causada por uma vitrine de loja. E é irônico que a iminência da morte não é nada, porque a quase morte - a quase morte constante - a quase morte constante não é nada, é cotidiano, é quase. E assusta. Acelera o coração por um... dois... três... ... dez segundos e volta à rotina. É um alerta, mas e daí, a vida continua - graças a deus, a vida continua.
É uma benção, a vida.
Eu sofro e mostro, por mais que não queira - ou tente não querer -, e ela e ele eles não entendem. E nem podem. Só eu posso entender, só eu no mundo - sinto eu.
Só. Só eu.
E o mundo -
e o mundo vive.