segunda-feira, 25 de abril de 2011

Autobiografia

Queijo que derreteu para fora da fôrma e foi se reenformar no vazio da rede pendurada entre dois penhascos. Há uma série de apagamentos na vida, uma sucessão de eternos erros passados até que se calhe de cair no buraco de um acerto presente – que, ironicamente, se tornará (se tornará?) um erro passado, no futuro. A grande questão é saber reconhecer o chão falso do suposto acerto. O grande problema é que eu nunca conhecerei a definição absoluta do que seria uma pisada em falso. Cada pisada, em cada época, tem um sabor diferente, tem uma verdade diferente e uma falsidade diferente. O agora é verdade, apesar de parecer uma invenção maligna e atrativa de um sádico buraco negro. A desgraça está justamente em sua estupefante atratividade. Ele me faz feliz, o tal buraco. E eu sinto que eu nunca havia sido feliz. Mas e se eu fui ludibriada? Antes eu fui ludibriada; agora – quem sabe daqui a alguns anos. Eu quero assim. Eu quero me suspender no ar e fazer ioga no tempo até que se criem prolongamentos infinitos das realizações dos desejos e dos desejos que algum dia serão realizados. Vou pegar a massa compacta e difusa do tempo e estendê-la no varal para que eu possa fisgar os pontos que me agradam – eu vejo todos, desde que existi até quando existirei – e colecionar pequenas esferas de momentos, balas de sensações e vidros de odores. Eu quero viver na externa estratosfera dos meus pensamentos e naquele lugar onde o eu-nem-poderia-imaginar me surpreende e acelera meus batimentos cardíacos até que eu choro. E passo assim, chorando e rindo e lembrando e querendo e vivendo.
Corte no vazio. Pedra que cai e rebate - não mole, quicando como uma bolinha de criança - dura, fétida, mas sem deformar o chão, sem deformar as paredes e a matéria orgânica, como uma esfera bidimensional virtual que bate nas bordas da tela do computador e volta para o centro. Descolamento. Dor de cabeça, palavras ocas. Desejo, anseio do antes e do depois - menos do agora.

domingo, 24 de abril de 2011

É incrível que quando se entra em uma nuvem de auto-definição as certezas vão se ampliando e se expandindo para vários campos da vida e de repente os planos para daqui a dez anos parecem tão realizáveis e imutáveis e tudo vai se resolvendo e se alinhando. Na cabeça, tudo vai se resolvendo e se alinhando. E a energia dispendida com esse suposto alinhamento já é tanta que a inércia impede que se concretize o longo processo de transposição do onírico para o real daquela trama de certezas. Mas mesmo assim é reconfortante ter um ponto de partida de estepe para quando o fôlego puder ser desplugado do recarregador.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A gente foi ao cinema e foi o melhor cinema, porque não teve cinema. Teve café, conversa e amor. Eu perdi um filme, e ganhei a vida.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Intervalo Considerado: 3 meses
Saldo Total: 7 pombas
Discriminação: pés mutilados - 3
                        rosto mutilado - 1
                        vida mutilada - 3
Conclusão: A partir dos dados observados, conclui-se que Deus criou as pombas - criaturas odiosas e repugnantes -, as fez por demais numerosas e deu-as aos milhares aos homens como termômetro de medição e controle de seu nível de sadismo e indiferença, ao mesmo tempo servindo de alarme para os próprios homens e de base para a avaliação da relevância da manutenção da raça humana. Não foram encontrados, dentre as fontes de pesquisa - variados escritos do Criador - manifestações quanto às suas intenções de destruir a humanidade, mas foi encontrada em um manuscrito a seguinte nota (dizendo respeito ao assunto acima referido):
"(...) e pelos resultados computados, não será preciso que eu dispenda muito esforço mental nesta questão".

segunda-feira, 4 de abril de 2011

O que acontece é que eu mudei semanticamente, mas, porque mantive a mesma estrutura sintática, ninguém foi capaz de repensar meu significado. O problema é que o abismo entre forma e conteúdo está crescendo de dentro para fora e criando uma enorme rachadura invisível na parede do vísivel; uma rachadura tátil, que espatifa pequenos pedaços de matéria interna e gruda-os em lugares aos quais não pertencem. Esses pequenos tumores são benignos, mas, mesmo assim, continuam a ser perturbações incômodas na ordem corpo-cerebral. O antídoto é simples, é abrir a boca, já dizia a crença popular. É um método quase homeopático, em que vale a transformação psicológica e a força de vontade.
Mas é como se eu tivesse uma lâmina afiadíssima e lábios costurados com cabos de aço. Para me livrar da mácula, preciso cortar fora a minha carne, dilacerar minha estrutura, me enfeiar aos olhos do mundo. Cada vez menos eu ligo para os olhos do mundo - que se engulam os olhos do mundo! -, mas às vezes um corpo não mutilado é necessário para se viver.

sábado, 2 de abril de 2011

Ode metonímica metalinguística (em prosa) à sua onipresença

Adoro a sua sinceridade. Metonimicamente, pode-se amar um todo só pelo elogio verdadeiro de suas qualidades. Gosto de seu ritmo, compassado, de gradualidade. Com ele, se ama aos poucos, não se esgota todo o amor em um só elemento, em um único instante - o amor é docemente diluído. Sua capacidade expansiva permite que o amor imenso tenha sempre em que se projetar, por poder projetar-se sobre vários focos - e, ainda assim, a metonímia mantém sua lealdade ao todo único e derivativo. Adoro, sobretudo, a sua onipresença. Amo-a.